Testemunho de quem esteve connosco
Como habitualmente, os voluntários da Associação Coração na rua reúnem-se quinzenalmente no pátio exterior, da igreja do Marquês, munidos de refeições, água, fruta, café e bolos que foram gentilmente oferecidos por entidades, por particulares e confecionados por elementos ou familiares da Associação. Todas estas ofertas são distribuídas por algumas pessoas do Porto que vivem em condições de sem-abrigo. Uns por carência de meios de subsistência sejam elas por falta de emprego, por ruturas afetivas e familiares outros por exclusão ou até por opção, sobrevivem em condições pouco dignas e por vezes desumanas e as expectativas de saírem da situação em que se encontram, diminuem proporcionalmente ao aumento de tempo nestas condições.
No dia 15 deste mês de outubro, fui convidada a participar como voluntária, o que de imediato agradeci e sem hesitar, aceitei. Sabia de antemão do que estavam a necessitar e contribuí também com fruta e compotas.
A noite estava fria, a chuva sem dar tréguas, teimava em cair e a escuridão deixava apenas transparecer o brilho dos olhares e os sorrisos dos intervenientes daquela missão. No entanto, isso não os desmotivava, pelo contrário, despertava neles ainda mais ânimo e maior dedicação. Fui apresentada a todos os elementos e instantaneamente senti-me integrada e envolvida.
Debaixo do parapeito de uma entrada e com a ajuda da lanterna de telemóveis, porque alguém esqueceu de ligar a luz, iniciamos bastante animados por montar as duas longas mesas embelezadas com fantasiadas toalhas, enquanto eramos observados por olhos curiosos de algumas pessoas que já ali se encontravam.
Na primeira mesa colocaram as embalagens descartáveis, os talheres, os guardanapos e os grandes recipientes uns continham cheirosas e quentinhas sopas e outros com aparente deliciosos condutos. Na segunda, imensos e variados bolos, diversas frutas, pão, águas e café.
Parecia uma linha de montagem de uma fábrica …, mas esta era a fábrica do Amor. Todos envolvidos com um único objetivo; aquecer a noite e aconchegar os corações de quem tinha perdido horizontes e ocasionalmente esquecidos, marginalizados e por vezes até mesmo o sol apreensivo se encolhia e não os aquecia.
Pouco a pouco, desvalorizando a chuva e o frio, dezenas de pessoas de diferentes idades e géneros, foram-se aproximando e quase em fila indiana, recolhiam radiantes, os sacos cheios que pendiam com o peso das refeições. No entanto no meio daquela agitação discreta e silenciosa, um senhor de meia-idade, fazia-se acompanhar de um carro de mão, que me pareceu com os seus pertences e a este atado dois cães que furiosamente latiam. O homem encolerizado, fazia um grande alarido, numa tentativa sem sucesso para que ambos serenassem, fazendo com que todos olhassem na sua direção.
Pensei com os meus botões: Como é possível alguém ter 2 cães, se nem para si tem alimento?
Perante o meu olhar um pouco assustado, mas também curioso e interrogativo, a minha amiga Nair, responsável pela minha esperada presença naquele local, pareceu adivinhar os meus pensamentos, diz-me:
O nosso objetivo aqui, … é só AJUDAR e nunca … nunca JULGAR. Desconhecemos a realidade que está por trás destas vidas!
Esta resposta fez-me arrepender de tal pensamento …
Os cães acalmaram, logo que o dono recebeu o saco, mas afastou-se ainda barafustando com os mesmos, pois esfomeados e impacientes insistiam em saltar ao seu redor atraídos pelo agradável cheiro que se esfumava dos sacos apressadamente fechados.
Pouco a pouco, o local foi esvaziando, sentindo-se de novo o frio, no entanto as pessoas que deixavam aquele espaço, levavam as mãos cheias e o coração mais quente.
Foi um momento maravilhoso, muito enriquecedor, mas que passou tão rápido que nem consegui aproximar-me de ninguém para dar uma simples palavra.
Porém a Nair, confidenciou-me: O Covid obrigou-nos a manter distância e fomos perdendo a envolvência com quem se dirigia ali, não só em busca de uma ajuda alimentar, mas também de uma palavra de conforto de ânimo e de carinho…, mas lentamente, espero voltar á normalidade.
Ainda sobrou algo? – Pergunta o Sr. Sérgio Ferreira… Se sobrou, embalem tudo aqui para o Sr. Rui, pois tem uma família numerosa a seu cargo.
Depois de deixarmos o espaço limpo e arrumado, voltei para casa entusiasmada. Tinha o coração mais preenchido e senti uma paz que há muito não experienciava, pois tinha contribuído um pouco para a fugaz felicidade de alguns. Por outro lado, senti uma angústia por não poder fazer mais. No entanto fica a esperança, pois espero voltar e quem sabe … fazer a diferença na vida de alguém.